WCON 2024

A FÉ E A ESPIRITUALIDADE PARA O COMBATE

Senhores, eu me chamo Emerson Couto Profírio, e este Profírio herdei do meu avô Antônio Profírio. Ele foi um jovem nascido num povoado às margens do rio São Francisco, no interior do estado de Sergipe. Viveu a sua infância, adolescência e início da juventude como muitos garotos da região. O seu mundo se resumia à paisagem bucólica do sertão nordestino. No entanto, enquanto ele vivia a sua vidinha de matuto sertanejo, o mundo estava mergulhado já há alguns anos na terrível Segunda Grande Guerra. Mas um dia, os limites do seu mundo foram terrivelmente destruídos, aquela vidinha pacata naquela localidade às margens do São Francisco conheceu os horrores da guerra. Antônio fora convocado a integrar a Força Expedicionária Brasileira e agora se chamava soldado Profírio. Como tantos outros brasileiros, o jovem trocou a enxada pelo fuzil, o roceiro agora era um infante. Tendo sido incorporado ao então 6º Regimento de Infantaria, “Regimento Ipiranga”, o soldado Profírio foi à Itália sem saber se voltaria vivo à sua terra. Muitos dos seus camaradas tombaram em solo europeu, mas, com a graça de Deus, ele voltou vivo e vitorioso para continuar a sua história, que já não seria mais a mesma.

O impacto que uma guerra causa na vida de uma pessoa, sem dúvida nenhuma, é algo indelével. A morte recebe uma nova leitura. Matar ou morrer são conceitos ressignificados à luz de cada experiência. Na guerra, é a morte do inimigo ou a tua morte. Não é que a vida vira algo banal, pelo contrário, é para viver que se mata. E nesta hora, a fé ajuda a lidar com esta aparente paradoxo. Norman Geisler, teólogo e filósofo norte-americano, escreveu: “O pacifismo, pelo motivo alegado de que nunca se deve tirar uma vida humana, não é bíblico, a proibição é contra o assassinato, não contra tirar vidas. Nem sempre tirar uma vida é assassinato. Não resistir ao mal, isto sim, é um pecado de omissão, e os pecados de omissão podem ser tão maus quanto os pecados de comissão”. Ainda que meu avô não tivesse esta base teológico-filosófica que eu aprendi com os livros, ele experimentou esta verdade na sangrenta escola da guerra. O soldado Profírio viveu até os seus 81 anos de idade, lúcido, tranquilo, com fé e com boa consciência diante de Deus e dos homens. Foi próspero em seu caminho e Deus lhe deu a graça de ver os filhos dos seus netos. Em 2007, ele descansou e as palavras de São Paulo podem descrever a sua vida: “Combateu o bom combate, completou a carreira e guardou a fé”.

Esta breve história, que é a história de muitos dos nossos heróis, leva-nos a uma reflexão. Como soldados, somos a salvaguarda do nosso povo. O ofício do militar é combater até a morte fazendo uso, se necessário, até da morte, pela vida do seu povo. Vida a que me refiro não é o simples existir, mas viver com toda a dignidade que o ser humano merece. Viver é ser parte de uma sociedade livre, justa, ordeira e democrática, que permite a cada indivíduo a manifestação do seu máximo potencial, limitado pelo senso de ordem da coletividade. Pois bem, é com isso que o soldado se ocupa e, voltando ao cerne da nossa reflexão, pergunto: Se lutamos até a morte pela vida, como estão as nossas vidas?!

Não temos dúvida de que o nosso Exército tem mais e mais dado as melhores condições possíveis aos seus soldados a fim de que desempenhem as suas missões com excelência. Somos muito bem adestrados, basta ver todo o planejamento ao qual os senhores se empenham diariamente, e o fazem com esmero. Temos visto a modernização de doutrinas, equipamentos e armamentos, o que dará ainda melhores meios ao nosso militar. Contudo, quem puxa o gatilho é um homem ou uma mulher, seres humanos que possuem as suas questões íntimas, as suas necessidades existenciais, os seus conflitos de consciência, as carências pessoais que não podem ser supridas por nada que se guarde numa reserva de armamentos. Todos nós entramos diariamente nesta Academia trazendo uma “mochila pessoal”, muitas vezes pesada, que não conseguimos deixar fora do Portão Monumental. Querendo ou não, esta “mochila” pesa na hora da tomada de decisões e do cumprimento da nossa missão.

O sábio Salomão disse: “Os soldados podem preparar os seus cavalos para o dia da Batalha, mas é o SENHOR quem dá a vitória” (Provérbios 21.31). Este entendimento da vida vem ao encontro da nossa reflexão à medida em que visualiza o soldado na sua totalidade, a sua dimensão física e a sua dimensão espiritual. O texto sacro está em conformidade com as mais arraigadas tradições militares. Vemos que desde tempos remotos os exércitos só saiam às suas guerras após consultarem os seus sacerdotes e buscarem a benção divina. Sabe-se, por exemplo, que o Duque de Caxias sempre se fez acompanhar de um altar de campanha nas suas batalhas. Como disse o Frei Orlando, “Gente desanimada é gente vencida”. A dimensão imaterial do nosso ser, as nossas emoções e a nossa fé, contam bastante para o resultado final do nosso trabalho. Um espírito sarado eleva o clima de qualquer ambiente e dá segurança ao cumprimento de qualquer missão, até mesmo quando se lida com questões de vida e morte. É profilático, portanto, cuidarmos das coisas da alma. Mesmo o mais rústico e talhado soldado precisa aprender a lidar com a dimensão imaterial ou espiritual do seu ser. No pensamento do sábio Salomão, nós possuímos duas responsabilidades: Preparar os cavalos para a batalha, o que significa o adestramento e o auto aprimoramento profissional, e exercitar a fé e a espiritualidade para o combate.

Pois bem, gostaria de me ater ao exercício da fé e da espiritualidade. A ciência já há muito tempo tem se ocupado com este tema, pois compreende que a fé tem uma participação especial no que os cientistas chamam de coping, ou seja, a capacidade humana de superar adversidades. William Osler, famoso médico canadense, se referia a este fenômeno nos seguintes termos: “A fé despeja uma inesgotável torrente de energia no indivíduo”. Fé é uma faculdade mental que nos leva sempre a crer positivamente naquilo que ainda não vemos e isto é um impulso que nos faz buscar sempre uma solução diante das questões que parecem insolúveis. O autor da epístola aos Hebreus assim define: “Fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se vêem” (Hebreus 11.1). Esta fé foi fator decisivo para o sucesso dos nossos pracinhas! O TC Raul Matos Simões, se referindo à importância do apoio espiritual na 2ª Guerra Mundial, escreveu: “Os Capelães, acompanhando com desvelo a vida dos soldados, fortaleceram-lhes a convicção na dignificante missão que vieram executar tão longe da Pátria, confortando-os nos momentos de crise”. Quando as fronteiras do nosso mundo pessoal caem abruptamente bombardeadas por uma má notícia e perdemos a sensação de segurança, é nos firmes pilares da fé e da espiritualidade que nos ancoramos para lidarmos com o inesperado de forma equilibrada. Quando a missão for árdua e o inimigo, um gingante desconhecido, será na fé e na espiritualidade que nos manteremos firmes e inabaláveis, sempre constantes na marcha. O cultivo da fé e da espiritualidade é uma arma que podemos empunhar diante dos conflitos de consciência que porventura se armarem dentro de nós. A boa espiritualidade e fé nos auxiliam a suportar a, tantas vezes pesada, “mochila pessoal” que carregamos e que não conseguimos deixar lá fora.

Meus irmãos de farda, que cada um de nós cuidemos de nós mesmos e dos nossos de forma plena. Dedicando-nos às nossas tarefas, mas sempre olhando também para dentro da alma, cuidando da nossa espiritualidade, buscando as coisas do alto. Tenho plena convicção que toda a nossa destreza será ainda mais potencializada à luz de um sempre constante exercício de fé. Esta prática será proveitosa a nós, às nossas famílias e à nossa querida Academia. Que o Senhor dos Exércitos nos ajude, nos guarde e nos dê sempre boa consciência e equilíbrio na vida. Encerro estas palavras com um pensamento do sábio Salomão que diz: “O coração alegre ilumina o rosto; mas a tristeza da alma abate todo o corpo” (Provérbios 15.13,14).

“Fé na missão!”

Pr. Émerson Couto Profírio – 1º Ten

Capelão Militar da Academia Militar das Agulhas Negras

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