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 A promulgação da constituição federal de 1988 titulada afetuosamente “cidadã” é assim denominada por trazer em seu bojo as diretrizes cabais para o sustentáculo da nova ordem social que se estabelecia. O novo paradigma veio regido por direitos que na essência positivaram valores como liberdade, igualdade e dignidade. Nascia ali, o que, em tese, seria o antídoto ao câncer do patrimonialismo estatal, principalmente no que diz respeito à Polícia Militar, quem, aliás, parece ainda não ter compreendido a amplitude de sua verdadeira missão, talvez, por estar inserida, juntamente com a Polícia Civil, num sistema possivelmente obsoleto, em parte, e carente de reparos conceitos-estruturais.
 
Foi sob o escudo dos rompantes movimentos ativistas dos Direitos Humanos internacionais de meados do século vinte, que aos poucos o Estado Democrático de Direito brasileiro foi se consolidando em torno de fundamentos republicanos como a dignidade da pessoa humana, a cidadania, etc. Tendo como foco a proteção, sobretudo, daqueles cidadãos encontrados em situação de risco social ou mesmo como possíveis vítimas de ações arbitrárias do próprio Estado, o leviatã daqueles anos funestos que acinzentaram a história brasileira.
O absolutismo Estatal que antecedeu essa nova era foi fato. E em decorrência disso, a formação e atuação da Policia Militar, uma das mãos de ferro do Governo na era opressora, foram decisivamente influenciadas por métodos violentos de repressão da criminalidade e de todo tipo de manifestação contrária ao interesse de políticos tiranos. Este cenário foi canteiro fértil para a formação de uma Polícia Militar patrimonialista, governista, alheia ao interesse social. Daquele contexto, o maior legado à posteridade foi a construção de estereótipos de aversão do povo a essa corporação.
Todavia, no incompreendido artigo 144, § 5º da nova carta de 1988 o legislador, no afã de reparar o cenário caótico outrora existente, atribuiu à Polícia Militar a nobre e fundamental missão de “polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”. E esse foi um passo importante para a mudança conceitual de uma “polícia de governo” para “polícia de Estado (povo, território e soberania)”, uma vez que o texto, em tese, esclareceu essa missão como sendo a defesa do interesse público, do povo e não mais do governo, como se fazia na prática.
Com ênfase na missão da gloriosa, entende-se que a incumbência de “polícia ostensiva” se faz pela distinção específica manifestada pela ostentação do fardamento e caracterização dos veículos utilizados nas atividades operacionais.
Entretanto, pode-se inferir que o texto atribuiu à instituição, missão ampla com o termo preservação. Senão vejamos. A etimologia da palavra “preservar”, segundo o site www.origemdapalavra.com.br, em outubro de 2011, nos trás “reservare” do Latim. Sinteticamente este termo significa “guardar, manter”. Analiticamente, tem-se o prefixo “re” que traduz claro, “atrás” e o radical “servare” que revela “proteger, salvaguardar, preservar”.
Uma leitura desatenta do aludido artigo induz ao entendimento restrito de que preservar diz respeito apenas à ação de conservar determinada situação em estabilidade. Exemplo básico: executar rádio patrulhamento em um evento onde exista grande aglomeração de pessoas. A presença notável da autoridade policial no local inibirá ações mal intencionadas. A ordem será mantida, guardada. Missão cumprida!
Preservar a ordem indubitavelmente é sim, combater a criminalidade por meio de estratégias e reprimenda à ilicitude, com policiamento ostensivo militar em suas diversas modalidades, como de patrulhamento ordinário com viaturas, com motocicletas, a cavalo, a pé e através de equipes especializadas como COE (Comando de Operações Especiais), ROTAM (Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas), GIRO (Grupo de Intervenção Rápida Ostensiva), GOC (Grupo de Operações com Cães) e CIPAMA (Companhia Independente de Polícia Militar Ambiental).
E esse encargo, em virtude da crescente demanda social por segurança, tem sido a principal atribuição das Policias Militares de todos os Estados do país. Tais serviços de caráter repressivos são vitais e se enquadram essencialmente como ações de preservação da ordem pública, pois trazem em seus fins, resultados contundentes à manutenção da ordem social.
Contudo, é imperativo que se esclareça a abrangência da expressão “preservação da ordem pública” do aludido artigo que por muitos é interpretado limitadamente.
Devido conter em si a idéia de “salvaguardar atrás”, ou seja, antes, o vocábulo “preservação” não pode ser restringido a termos que sinalizam apenas atividades de caráter repressivo, [o que, às vezes, se confunde com a pseudo-operacionalidade dos que agem à margem da lei], traduzidas nas modalidades de patrulhamento ostensivo supracitadas. Antes, porém, preservar é desenvolver artifícios para a prevenção da ilegalidade. E a importância da prevenção para a ordem pública escusa comentários.
Da mesma forma que política efetiva de geração de emprego, de governo sério, que é raro, não deve ser resumida ao aumento de vagas de trabalho, mas também à preparação do cidadão para a empregabilidade, preservar a ordem é bem mais que manter, através de ações repressivas, os índices criminais em níveis explicáveis. É, principalmente, preparar a polícia e a sociedade para prevenir a criminalidade antecipando-se ao delito.

E prevenção não se faz simplesmente com mais policiais nas ruas, a panacéia do pseudo-policiólogo.

Prevenção tem pouco ou nada a ver com o acionamento ao sistema jurídico após a eclosão de um fato ilícito. Prevenir é ensinar o bem à criança antes que por influência ela descubra e escolha o mal, mídiaticamente sedutor. É garantir aos jovens e adultos, condições dignas ao exercício da cidadania plena.
Prevenção envolve todas as variáveis do processo de desenvolvimento social. E justamente por se tratar de demanda multifatorial, não poderá ser colocada em prática por um único agente. São necessárias ações em conjunto de todos os atores sociais, voltadas diretamente às causas em potencial da ilicitude. É oportuno lembrar que a soberana carta no caput do artigo em tela determina como sendo de todos essa responsabilidade.
Preservar a ordem pública é, portanto, mobilizar a comunidade para que em parceria com o Estado e demais entidades envolvidas no processo de segurança pública, atuem antecipadamente à manifestação da conduta reprovável. E isso, de forma a convergir esforços para a concretização das garantias sociais fundamentais consagradas no texto magno. Preservar a ordem pública é em suma, construir uma sociedade cada vez mais próxima e participativa e uma Polícia cada vez mais comunitária.
 
Marcos Ribeiro Morais
1º Tenente QOPM da Polícia Militar do Tocantins

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